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ESPAÇO CULTURAL

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2º Lugar

Assinatura Mensal Sanarfix e Assinatura mensal Whitebook + 01 curso gratuíto Dexpertio

Corona-Céu por Uma

Larissa Cordeiro Lopes

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1º Lugar

Kit de Livros São e Salvo ( Juan Gérvas), e Triagem e Consulta ao Telefone ( Sally-Anne Pygall).

Ela é a Própria Poesia

Adriele Taine dos Santos Souza

Daniela Cristina Pereira

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3º Lugar

01 curso gratuito Dexpertio

As Mãos da Vila

Marcos André Lima Melo

Boca Amarga

Luísa Chaves S. Silva

As mãos da vila

Porto Velho - RO

Marcos André Lima Melo; Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

 

As pedras que tirou

O lixo que tocou

O tempo que passou

As mãos então lavou.

O barro que sujou

A água que tocou

A marca que deixou

O que não se apagou.

A força que cresceu

A flor que floresceu

O vírus que morreu

Na mão que foi lavada.

A vila que brilhou

A mão que ajudou

O som que ecoou

Na mão que foi lavada

E sempre foi.

Corona-céu por uma

Belo Horizonte - MG

Larissa Cordeiro Lopes

Médica de Família

          Eu vejo a vida daqui. Quando acordo, observo logo o céu que, ainda manhoso, insiste em não amanhecer. Ele vai mudando de cor bem devagar e é uma pena que eu não tenha mais do que um ou dois minutos para assistir a esse espetáculo. Felizmente, com a pausa do ritmo na cidade nas últimas semanas, o canto dos pássaros está mais encorpado. Talvez os vizinhos com asas estejam recebendo mais visitas enquanto nós, humanos, estamos em quarentena.

          Ainda pela manhã, tenho outra janela como observatório. Vejo a vida passar rapidamente à minha esquerda enquanto tento permanecer atenta ao desenrolar da avenida. A rua está mais vazia – não tanto quanto deveria – e a cidade agora aparentemente adotou uma paleta de cores mais frias como a de Ensaio sobre a Cegueira. No rádio, ora ouço músicas que me ajudam a lembrar a maravilha que é dançar rodeada de gente até o pé doer, ora escuto notícias que me trazem os números que assustam e que sei não corresponderem à realidade.

        Por muitas horas a minha janela dá para outra janela de onde vejo um corredor de gente que caminha assustada. Mas antes de enxergar o corredor, há um pequeno jardim iluminado pelo céu indeciso de outono, que muitas vezes se torna preto trazendo uma tempestade tão assustadora quanto a realidade. De vez em quando, entre uma angústia e outra, forço-me a olhar para o céu só para lembrar que ele ainda está lá. Após isso, retorno ao céu que enxergo à minha esquerda enquanto novamente fico atenta à avenida. Reflito sobre as vidas que cruzam o meu céu existencial cinco vezes por semana.

         Quando o sol já encerrou o expediente, procuro verificar se vamos ter a companhia da lua enquanto tento não me perder por completo nas trivialidades. Vejo as estrelas se acendendo, sinto o geladinho que vem das montanhas acompanhada de uma xícara de chá. Lembro que amanhã é dia de lavar roupa, que é chegada a hora de arrumar o armário, que sempre haverá a sexta-feira e que ainda é bom viver.

Era um ano par

Uberaba - MG

Magali de Fátima Oliveira Coelho 

UMS Valdemar Hial Junior/SMS Uberaba

 

      Era um ano par... Para a saúde, economia, cultura, medicamentos do governo, SUS, Bolsa Família, muita comida e muito arroz.

   Era um ano par... Ano de eleições e Olimpíadas. Teria Criança Esperança, festa junina. Jogo do Flamengo e do Corinthinas. Teriam novelas, muito emprego e um máximo aumento de salário mínimo. Não seria ajuda emergencial. Um ano sem Natal.

      Vesti minha melhor roupa, troquei de carro. Marquei viagens, comprei passagem. Cai mais um avião, o prefeito é ladrão.

     Chegou o carnaval e também um vírus. Rachadinhas, fraudes e incêndios criminosos. Quem cortou minha árvore? Caixões enfileirados, o desgoverno, pragas bíblicas. Assassinato encomendado, terremotos, crise, gafanhotos, atentados e UTI. Lock down total ou vertical. Cloroquina, azitromicina e ivermectina, termômetro e álcool gel. Nada de vacina, morrer é sina. Tragédias e temporais, vidas negras importam. Sai Ministro, entra Ministro, denúncias e delação.

     Era um ano par... Não tem respiradores. Feminicídios e suicídios, aumento da pressão, depressão. Veio o óbito da saúde e do nascimento pandêmico do coronavírus. Foi-se o braço, o abraço, vieram as máscaras. Máscaras de palhaços, máscaras sem beijos e sorrisos. Máscaras virais, monótonas e cianóticas.

    Expandindo horizontes... De um ano par. Ou ímpar?

Boca Amarga

Bom Despacho – MG

Luísa Chaves Simões Silva

Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ)

      Ah, a boca amarga. Comum e inespecífica. Não passa uma semana sem alguém com essa queixa. A primeira vez que acompanhei uma consulta sobre o assunto, eu estava no quarto período da faculdade. A paciente era uma senhora e o médico era jovem e cubano. Ele explicou para ela algo que eu nunca esqueci "primeiro a gente pensa no simples - remédio, água, higiene - e depois vai para o complexo, que no caso dela estamos trabalhando agora com as questões da mente". Questões da mente. Isso me marcou.

     De lá para cá vi muitas senhoras com essa queixa e com um perfil de paciente muito semelhante, em busca de uma solução para a amargura do engolir. As investigações diagnósticas são amplas. Refluxo? Saúde bucal? Cigarro? Tricíclico? Cirrose? Questões da mente? E o mais recente: Covid?

     Ouso dizer que acho tudo muito simbólico, sempre achei poético. E não há motivo isolado, importante dizer. A queixa da boca amarga nunca vem sozinha. Ela traz a história do marido abusivo, vem com a preocupação com o filho que desviou do caminho, a angústia com o desemprego. As bocas amargas contam as histórias amargas.

     Uma vez uma senhora me respondeu que tomou na vida muito café forte para dar conta de tudo que ela tinha que fazer e depois que o marido morreu ela sente que tem café na boca dela o dia todo - "margano". Os problemas sociais vêm acompanhando a demanda. E contam muita história! A "gastrite nervosa" da mãe solo de cinco filhos, a falta de acesso a cuidados de higiene do trabalhador, o antidepressivo da idosa que apanha do esposo, o fígado sobrecarregado da chefe de família desempregada, a funcionária que não consegue se aposentar e passa os dias com lombalgia. A pandemia.

     A amargura é sintoma físico e social. Não há saúde com boca amarga. A amargura que o coração sente. A amargura que a coluna grita. A amargura que o corpo treme. A amargura que, com a boca, pede socorro.

Janela

Porto Alegre - RS

Rafael Fernandes de Almeida

Grupo Hospitalar Conceição (GHC)

Dona Janice, 64 anos, mineira, dona de casa

Segundo o marido: “dona de nada”

De acordo com o IBGE: de quase nada

Já Janice sabe que é dona de quase tudo

E aqui, mesmo por um momento curto, de absolutamente Tudo!

Em seu lar humilde vil só ouve: “cala a boca, sô”

Escola tampouco viu: nunca nem abriu um livro

Pernas trancadas em nó, vestido longo verde vivo

Somente quando está só que não é borocoxô

*

Com a mão suada pega, firmemente, a madeira

Então gira com alegria para ver um novo mundo enfim

Põe força: a danada é custosa!

Arreda a poeira!

Brada bem alto a conquista: “Abri esse trem, agora sim!”

Vai com fé, é isso

Escancara o horizonte

Descansa a fronte

Abre um sorriso

Janice, lá está ela

Mergulhando em aquarela

Ao vislumbrar pela janela

As vidas que não viveu: se achava velha

Porém agora vê, tudo que não viu

Respira, cheira, sente o ar juvenil

Detrás do varal na varanda e seu macio lençol

Abraça na pele o calor carinhoso do Sol

Senta, se acalma, separa o crochê

Perde-se nos sonhos que não para de ter

Acredita no frescor do alvorecer de uma nova manhã

Dança com as árvores, os orvalhos, as hortelãs

Bisbilhota os vizinhos e suas inúmeras vidas

Cumprimenta as pedras da calçada querida

Desfruta sem culpa o sabor vermelho do doce de caqui

Fantasia nas nuvens o êxtase que é estar presente aqui

Escuta a ciranda da criançada brincando

Murmureja o refrão da banda passando

Inspira amor nos pães de queijo da padaria do Seu Geraldo

Chora no mais belo crepúsculo lilás e dourado

Viaja no cintilar dos astros, meteoros, eclipses, e até, jura ela, um disco voador

Reza doze Ave-Marias, devaneia o paraíso, e agradece a Jesus Nosso Senhor

 

Saúde tem nome

No seu refúgio

O portão cujo

Pelos lados some

É tudo tudinho teu

“Milagre, uai, sou eu”

Delicia-se neste rito

“Eis o meu infinito”

*

Já disse Janice

A janela é dela

O paciente sem educação

 

Salto da Divisa - MG 

Gabriela dos Santos Marques

Médica residente do Hospital metropolitano Odilon Behrens (HMOB), em Belo Horizonte.

O problema do meu paciente é a falta de educação

 

Ainda que ele seja umas das pessoas mais gentis que eu conheci por essas bandas de cá, é sim, sem educação, coitado!

Foi assim: primeiro recebo um pedido de consulta prioritária no Centro de Saúde e repito, nervosa, a medida de pressão mais alta que eu já fiz: 25 por 11. Sei que nessa hora, até a minha, sempre baixinha, deve ter dado seus pulos também.

 

Respiro. Folheio seu prontuário-livro e entre garranchos e carimbos leio, de outros anos, de vários outonos, “crise”, “urgência hipertensiva”, “hipertensão descontrolada”.

 

E lá vamos: Descontrolado, assintomático, todo carismático. Percebo que “pico pressórico” é seu basal: Seu A. parece viver bem, no topo dessa montanha cardiovascular.

 

Desarmo meu próprio senso de urgência. Suspiro, entendo agora que essa aqui é consulta demorada… a parcelar. Entendo que a gente vai se ver de novo. Conta pra mim, seu A., por que é que essa pressão é assim?

 

De chapéu na mão, quase escolar, ele começa: é que eu bebo os remédio tudo errado, quando lembro. Não sei qual que é qual.

 

E é aí que meu trabalho complica, quando eu percebo que o problema não é ajuste de prescrição. Faço perguntas… me intrometo: Que universo é o seu, onde palavra dita soa difícil e palavra escrita escapa à visão?

 

Compreensão. Pressão. Como é que pode, miséria tanta, chacoalhar inteira nossa comunicação?

 

E ô homem bom, senhor doce! Sorri um monte, me mostra um dente bambo e um carocinho benigno. Coisas, pra ele, mais verdadeiras e preocupantes do que a tal da pressão: „nunca vi, nem senti, eu só ouço falar‟.

 

Conta pra mim, que mesmo beirando os oitenta, trabalha na enxada até bambear de sol. Diz das netas de olho bonito. Diz da nora boa que sabe ler e do filho brabo que bebe demais. Conta da sua „véia‟, toda bonita, que num lê também não. Conta que na roça, se tentava ir na escolinha, pai batia. Que aprendeu a assinar no mundão.

 

E diz: vou tomar, vou cuidar. Vou marcar, vou fazer. Vou voltar, vou medir.

 

E eu entendo que sou eu quem tem que ir. Porque daqui, de branco e à tinta, eu tô bem longe do universo do seu A. E que eu escrevo, mas não leio bem: preciso ver, preciso entrar…

 

E é com sorte que encontro a brecha perfeita em uma agenda voraz. Que eu encontro a agente de saúde ideal. Que ela acolhe minha preocupação com carinho e energia. Encoraja, vamos juntas? E com magia, transforma copos de mantimento, emborrachados e cola-quente num sistema moderno de dispensação. De encher os olhos! Traduz a minha prescrição em qualquer coisa mais concreta, mais legível no mundo do seu A.

 

Ela não vem de lá, mas tanto o visita, que já sabe ser minha guia, intérprete e tradutora.

 

E equipadas com esse arsenal-equipamento-presente, hoje pousamos: Ô de casa, pode entrar? Oi pras netas de olho bonito, pra namorada de mais de meio século, pro filho desafiador e pra vizinha amiga. “Como é que vão?”. São todos pacientes e pedem todos sua colherinha de chá: “só uma vitamina”, “só uma dipirona”, “olha aquele machucadinho”, “dá pra medir minha pressão também?”…

 

Mas o centro da atenção é seu A.: “olha aqui o que a Cíntia fez pra arrumar os remédios do senhor!”. Reexplicamos, traduzimos e treinamos. Testamos. “Deixa longe das crianças tá? Pode não!”

 

E com os vidrinhos arrumados, os pedidos de exame marcados de colorido e a pressão já em melhora – talvez caminhando devagarzinho de altíssima pra alta – e com um abraço bem caloroso eu só consegui pensar:

 

Gente tem doença, mas gente é universo… tem casa, tem medo, tem problema, tem passado. Tem a vista da janela! Tem quintal.

 

Gente é família – e comunidade: a parentada toda, cachorro e papagaio.

 

E pra isso, prescrever é pouco. É até frustro. Pesquisar é mais fundo.

 

Descrever é preciso.

 

E, às vezes, dizer: entendeu ou quer que eu desenhe? Porque a gente pode desenhar também.

 

Ele tão educado, mesmo sem educação.

Eu aprendendo a ler, mesmo tão letrada. 

Ela é a própria poesia

Adriele Taiane dos Santos Souza; Daniela Cristina Pereira Sá

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

 

Ana se ama

Fato

Ana se ama

Mas no mundo ela teve decepções

Sim, no mundo ela teve decepções, dores, sofrimentos.

No mundo ela teve decepções, frustrações, solidão, desemprego, morte, agressão, depressão.

No mundo ela teve retrocesso, abandono, erro, ausência, divórcio, saudade, problemas.

 

Porque os velozes nem sempre vencem a corrida, os valentes nem sempre triunfam na guerra, os sábios nem sempre tem comida, a riqueza nem sempre é dos prudentes e a honra nem sempre é dos inteligentes. Porque o tempo e a sorte pertencem a todos.

E no silêncio e na solidão, Ana desconfia. Aí ela duvida. Ela duvida que alguém a ama, mesmo que ninguém tenha prometido priva-la do sofrimento. Porque nem seu filho foi poupado. E Ana sabe o que é sofrer na solidão.

 

Ana passou a viver uma eterna agonia e nem sua família a entendia. Nas alucinações, sua casa era seu único abrigo. Sobre sua vida, Ana sempre escondia. Sua filha, única companhia, não lhe entendia. E assim Ana foi vivendo, moída como um vaso na mão de um oleiro. Cada vez que tentava se reerguer, era esmagada como uma pequena formiguinha. Ela enfrentou dores que não deseja a seu pior inimigo. Mas um dia Ana clamou. AAh como ela clamou.

 

- Meu Deus, Meu Deus! Eu tenho o direito de sonhar?

 

E foi assim que Ana encontrou a esperança, uma pequena esperança. Como o sol ao despontar no horizonte. E assim, Ana aprendeu que um grande amor é capaz de uma grande entrega. Você não passa por nada sozinho, você não enfrenta nada sozinha. Ana já não estava mais sozinha.

Olhe para Ana e veja a esperança a renascer. Olhe de novo e veja uma fênix surgir. Ana é o encanto, a magia, o mistério… Ela é um sonho, por mais que seja real e é a única fada que realmente existe… Ela sou eu, ela é você, ela somos todos nós… Ela não cabe nos versos, ela é a própria poesia!

QUANDO O CASO CLÍNICO SOU EU: DESCONSTRUINDO O MITO DO JALECO.

Fortaleza – CE

Amanda Roberta Fonsêca do Nascimento

Médica da Estratégia de Saúde da Família

 

Quando o caso clínico sou eu: desconstruindo o mito do jaleco

Fortaleza, 08/08/2020.

D8 – febre alta, artralgia difusa e dispneia leve.

# COVID 19? CHIKV??

 

Digito devagar no meu diário virtual, com dedos trôpegos que teimam em não atender aos meus comandos. Aliás, o meu corpo inteiro parece ter escolhido a segurança das cobertas e travesseiros. Quero levantar, mas não consigo.

 

Oito dias de febre alta. Uma lista de complicações cutuca o meu sono e inquieta o meu repouso: rabdomiólise, insuficiência renal, encefalite… Quando o curso do pensamento se fragmenta, algo em mim tenta se agarrar à lógica do que é conhecido, familiar.

Por mais que eu me esforce, a solidez do conhecimento e da experiência clínica se derretem e escorrem por entre os meus dedos rígidos. Olho os resultados dos exames laboratoriais e da tomografia com a fronte franzida pelo esforço. É inútil. Os números riem de mim, eles se divertem com a arrogância de quem sempre oferece as respostas. Não tenho nenhuma agora. Apenas números escarnecedores e muita dor.

 

38.8 °C, após uma hora de dipirona, 1g, via oral. O termômetro apita enlouquecido. Peço ajuda. Os punhos doem, mas precisar de terceiros, talvez traga ainda mais Dor. A minha irmã-cuidadora-implacável destranca a porta e me obriga a entrar no chuveiro: ’’Vamos voltar ao hospital, se continuar assim, você vai convulsionar’’.

 

As minhas comorbidades… escondidas, disfarçadas, negadas e, por vezes, negligenciadas. A ilusão da invulnerabilidade que há em Promover o Cuidado, em vez de recebê-lo. “E doutor fica doente???’’.

 

A água gelada me fere como se mil agulhas brincassem com os nervos do antebraço. Não consigo baixá-los. Penso em todas as gasometrias arteriais que já solicitei. Muitas delas, coletei eu mesma. Chorei por cada paciente que sofreu dor semelhante e jurei pensar dez (ou foi mil?) vezes antes de solicitar exames invasivos.

 

Na cadeira, junto à mesa de estudo, estão o jaleco e o estetoscópio. A Armadura e a Lança. Simples instrumentos de trabalho, mas que abrigam em si um estigma de poder e distanciamento emocional, nos afastando da realidade das pessoas que tratamos. Barreiras que deveriam ser melhor compreendidas. Jaleco impecavelmente branco é o símbolo de uma Era onde o Modelo de Cuidado era verticalizado e hierarquizado. Defendemos a horizontalidade do Cuidado e a Interdisciplinaridade, mas ainda mantemos, sem perceber, a ideia patriarcalizada do atendimento centrado na receita e no doutor de branco, que sabe tudo. Barreiras. Muros.

 

A porta continua trancada. Sinto falta dos meus filhos. Vejo a exaustão nos olhos da minha irmã. E me sinto tão inútil. Tão culpada.

 

Mais um pesadelo febril. Olho para o teto e vejo pacientes que já partiram. Um deles, aponta o dedo acusador para mim: ’’ Você nunca vai curar a si própria’’.

 

Há 11 dias, aspirei as secreções do traqueóstomo de uma paciente, em uma visita domiciliar. Uma situação extrema. Paciente com má saturação. Ambulância demorando. Família aflita. Não estou com o EPI adequado.

 

Local de difícil acesso. Paciente jovem, com uma síndrome genética. Estou na linha de frente da COVID 19 desde o começo. Não vou adoecer, pensei.

 

Quatro dias depois, estava atendendo na UAPS. Algo parecia errado. Fechei os olhos e senti a cor do Vento. O Sabor de uma risada. Poesia. Música. A realidade se embaralhou. Quando acordei, a enfermeira, parceira de Batalha, me perguntou como foi que eu vim trabalhar com uma febre tão alta. “Nao percebi, respondi’’.

 

Nosce te ipsum ut sis qui es - Conhece-te a ti mesmo, para seres quem és.

 

A famosa máxima délfica me convidava à autoimersão. Olhei-me no Espelho e enxerguei além das minhas olheiras. Tantas noites de plantão. Tanta dor e tanto luto. Naquele momento, chorei o Luto das minhas imperfeições. Uma foto naquele estado, certamente, não renderia muitas curtidas nas redes sociais. Mas Eu me aceitei. Com a minha Trombofilia, os anticoagulantes, a minha dor física e muitas outras Dores mascaradas por um sorriso ou registradas com tinta, na minha pele. Médicos são pessoas. Pessoas adoecem. ’’Tá tudo bem!’’.

 

No hospital, colegas passeiam sem EPIs adequados.

- Você não vai se sentar? Pergunta a colega.

- Você não está paramentada, respondi.

- A paciente que você atendeu segue na UTI e testou positivo para covid!

 

RT-PCR (swab nasal e orofaringe) e teste rápido negativos para o novo coronavírus. A voz dela fica cada vez mais distante. Conheço os próximos passos, mais exames. E a Dor permanece. Quero a minha casa, meus filhos, meu Espelho. Aprender e Aceitar quem Sou me fortaleceu para enfermidades mais devastadoras que um vírus, porque trazem consigo a pandemia do preconceito e da persistência de comportamentos sociais que empatam a execução de Modelos colaborativos para a oferta do cuidado e, principalmente, o empoderamento do paciente enquanto sujeito no processo saúde-doençaconhecimentopartilhado-cura.

De novo no Hospital. Funcionários me olham com franca curiosidade e cochicham entre si. Não reclamei da dor, mas a Colega me ofereceu codeína com paracetamol. Aceitei com relutância. Tanta gente desenvolve dependência. Tudo começa para aliviar a Dor: Opióides, benzodiazepínicos … Pessoas exibindo estetoscópios reluzentes, mas doentes de exaustão. Parecer perfeito e fazer disso um ofício também é laborioso e adoecedor.

 

A resistência à dor não faz de mim mais forte. Sou pessoa que erra. Acerta. Aprende. E o aprendizado de agora é Silêncio-Paciência-Espera.

 

A debilidade de ser humana, vagueando nos multiversos que permeiam o SERMULHER-EXISTIR, ensinou-me que o estereótipo de médica-mulher maravilha é uma prisão. Não sou perfeita. Não preciso ser.

Votação

Votação Encerrada, às 14h de 21/11/2020.

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